Ser, "apenas", humano

"Mikhola! Fecha a porta!", grita ao filho, encolhida no fundo daquela ruína que já foi casa e de cujo teto esboroado vai pingando o derreter da neve. Mãe, de 93 anos, e seu filho, Mikhola, de 60, foram os únicos habitantes de Bohorodychne que não fugiram da vila, quando esta se tornou linha de combate da agora conhecida como a batalha do Donbass.

Tudo por “culpa” do rio, que ali lambia os pés dos montes vizinhos da vila, de repente transformada de reserva natural em tampão de bloqueio do avanço russo sobre Kramatorsk e Slovyansk.

Descobrimo-los por acaso, ao procurarmos a origem daquele fumo que se esgueirava céu acima, no meio de um cenário de destruição a que não escaparam nem a Igreja Ortodoxa do “Local onde Deus nasceu” nem o mosteiro adjacente, ambos transformados depois em latrinas.

Durante cinco semanas percorremos mais de 20 mil quilómetros para produzirmos sem folgas reportagens diárias sobre o impacto da guerra nos mais frágeis, nesta minha terceira rotação na Ucrânia.


Do arranque em Ivano-Frankivsk até ao extremo oposto da Ucrânia, próximo da fronteira com a Rússia, em Kozacha Lopan. Seguindo-se toda a linha de combate até ao sul, em Kherson, depois o litoral ucraniano do Mar Negro e a seguir tudo de novo em sentido oposto.

Primeiro com o repórter de imagem Sérgio Ramos e, depois, quando este se magoou, com o João Oliveira, fomos a todos os pontos quentes da guerra, incluindo ao olho do furacão em Bakhmut, mas o que me pôs de joelhos foi o olhar de Nina, na última reportagem. Perante ela, eu pus-me de joelhos dentro de mim. Por vergonha da humanidade a que também pertenço, deixar que alguém me olhe assim.

Recordo-o agora enquanto teclo cada uma destas letras. Combato o aquário em que se varandam os meus olhos, por me ter vindo embora. Por a guardar desabrigada dentro de mim.

“Mikhola! Fecha a porta!” – e o filho fechou. Como se o fechar da porta erguesse um escudo protector dos estrondos de artilharia que continuam a rolar no vale, montes abaixo, em direção à vila, como o fizeram há meses os carros de combate e a infantaria russos.



Porque não fugiram, como todos os outros habitantes de Bohorodychne, pergunto a Mikhola: “Já viu como está a minha mãe? Ir sem ela? Deixá-la para trás? Nem pensar! E para onde iria eu se nasci aqui…onde poderia eu ir?”.

Mostra-me depois, a meu pedido, o bunker onde ele e a mãe se recolheram meses a fio, junto ao poço e de onde se aventurava a sair, nos pousios da metralha, para ir buscar água e conservas. Desce às entranhas da terra por uma porta, semi-oculta entre destroços e uma campa. E eu sigo-o até um mini-quarto onde mãe e filho, deitados ao lado um do outro, pouco mais espaço deixariam livre no chão.

“Era aqui!”, diz-me ele. “Era aqui que ficávamos até pararem as explosões…e veja aqui…o que elas faziam…”.



Mesmo a mais de dois metros de profundidade, as paredes do “quartinho” apresentam fendas estruturais. A ameaçar fazer ruir paredes e tecto sobre quem ali procurava abrigo.

Mikhola faz-me sinal para sairmos. E eu precedo-o. Não cabemos ao mesmo tempo nas escadas. Os estrondos das explosões prosseguem. “Mikhola!”, grita a mãe lá em cima. E eu apresso-me para ela, como se a minha inutilidade não fosse total.

Peço ajuda ao fixer, Victor, que traduza para ucraniano o que lhe quero dizer, mas ele diz-me que ela ficou surda durante os bombardeamentos. Só repete a pergunta se nós temos “comprimidos para o coração”.

Como se deixa alguém assim para trás? Ela fala…fala…diz mil coisas que não entendo. Com a cara franzida. A espantar demónios…e eu faço-lhe uma festa na cara. De repente ela pára de falar. Olha-me apenas. Hesito uns segundos e depois abraço-a. E ela aninha-se em mim. Como se fossemos ambos gente. A mesma gente. Porque o somos sem tantas vezes o sabermos.

Por instantes deixo de ser jornalista. E sou apenas o António.