Tudo por “culpa” do rio, que ali lambia os pés dos montes vizinhos da vila, de repente transformada de reserva natural em tampão de bloqueio do avanço russo sobre Kramatorsk e Slovyansk.
Descobrimo-los por acaso, ao procurarmos a origem daquele fumo que se esgueirava céu acima, no meio de um cenário de destruição a que não escaparam nem a Igreja Ortodoxa do “Local onde Deus nasceu” nem o mosteiro adjacente, ambos transformados depois em latrinas.
Durante cinco semanas percorremos mais de 20 mil quilómetros para produzirmos sem folgas reportagens diárias sobre o impacto da guerra nos mais frágeis, nesta minha terceira rotação na Ucrânia.
Do arranque em Ivano-Frankivsk até ao extremo oposto da Ucrânia, próximo da fronteira com a Rússia, em Kozacha Lopan. Seguindo-se toda a linha de combate até ao sul, em Kherson, depois o litoral ucraniano do Mar Negro e a seguir tudo de novo em sentido oposto.
Primeiro com o repórter de imagem Sérgio Ramos e, depois, quando este se magoou, com o João Oliveira, fomos a todos os pontos quentes da guerra, incluindo ao olho do furacão em Bakhmut, mas o que me pôs de joelhos foi o olhar de Nina, na última reportagem. Perante ela, eu pus-me de joelhos dentro de mim. Por vergonha da humanidade a que também pertenço, deixar que alguém me olhe assim.
Recordo-o agora enquanto teclo cada uma destas letras. Combato o aquário em que se varandam os meus olhos, por me ter vindo embora. Por a guardar desabrigada dentro de mim.
“Mikhola! Fecha a porta!” – e o filho fechou. Como se o fechar da porta erguesse um escudo protector dos estrondos de artilharia que continuam a rolar no vale, montes abaixo, em direção à vila, como o fizeram há meses os carros de combate e a infantaria russos.
Porque não fugiram, como todos os outros habitantes de Bohorodychne, pergunto a Mikhola: “Já viu como está a minha mãe? Ir sem ela? Deixá-la para trás? Nem pensar! E para onde iria eu se nasci aqui…onde poderia eu ir?”.
Mostra-me depois, a meu pedido, o bunker onde ele e a mãe se recolheram meses a fio, junto ao poço e de onde se aventurava a sair, nos pousios da metralha, para ir buscar água e conservas. Desce às entranhas da terra por uma porta, semi-oculta entre destroços e uma campa. E eu sigo-o até um mini-quarto onde mãe e filho, deitados ao lado um do outro, pouco mais espaço deixariam livre no chão.
“Era aqui!”, diz-me ele. “Era aqui que ficávamos até pararem as explosões…e veja aqui…o que elas faziam…”.
Mesmo a mais de dois metros de profundidade, as paredes do “quartinho” apresentam fendas estruturais. A ameaçar fazer ruir paredes e tecto sobre quem ali procurava abrigo.
Mikhola faz-me sinal para sairmos. E eu precedo-o. Não cabemos ao mesmo tempo nas escadas. Os estrondos das explosões prosseguem. “Mikhola!”, grita a mãe lá em cima. E eu apresso-me para ela, como se a minha inutilidade não fosse total.
Peço ajuda ao fixer, Victor, que traduza para ucraniano o que lhe quero dizer, mas ele diz-me que ela ficou surda durante os bombardeamentos. Só repete a pergunta se nós temos “comprimidos para o coração”.
Como se deixa alguém assim para trás? Ela fala…fala…diz mil coisas que não entendo. Com a cara franzida. A espantar demónios…e eu faço-lhe uma festa na cara. De repente ela pára de falar. Olha-me apenas. Hesito uns segundos e depois abraço-a. E ela aninha-se em mim. Como se fossemos ambos gente. A mesma gente. Porque o somos sem tantas vezes o sabermos.
Por instantes deixo de ser jornalista. E sou apenas o António.